A necessidade de lentes mais fraternas.
Os direitos de terceira geração (ou dimensão) nos convidam a transcender nossa individualidade em prol do coletivo, nos provocam reflexões sobre a importância do que nos é comum, transindividual.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado, a vida digna, a erradicação da pobreza e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, são exemplos de direitos e objetivos fundamentais intrinsecamente interligados; o exercício e o alcance dependerão de práticas e políticas públicas holísticas, sustentáveis, solidárias.
Hoje, enquanto habitantes do mesmo planeta, moradores da mesma casa, somos convidados, ironicamente, por meio do isolamento, a pensar no coletivo, a compreender que somos seres sociais. Interligar os nossos esforços e respeitar os limites impostos é condição sine qua non para permanecermos vivos; estamos sendo apresentados aos nossos deveres fundamentais.
A Constituição Cidadã de 1988, em seu art.4º, IX, afirma que a República Federativa do Brasil se rege, nas suas relações internacionais, entre outros, pelo princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Na atual conjuntura este dispositivo constitucional nos proporciona um grande número de reflexões. Reconhece que somos parte integrante de um todo maior, que para o progresso (leio evolução) é necessário cooperação. Para o bom intérprete, o coronavírus ensina que o problema não é só da China, nem só da Itália. O progresso que se busca não é o de um ente, instituição ou entidade, mas da humanidade. O princípio da cooperação, logo, nos remete aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, à “consciência da humanidade”, onde as nações do mundo devem desenvolver relações de amizade. Muitos pensarão que é algo utópico, mas como já dizia Galeano citando Fernando Berri: “a utopia serve para isso, para que eu não deixe de caminhar.”.
Caminhando, recentemente, o governo cubano acolheu um navio britânico com viajantes infectados pelo coronavirus, após ser rejeitado em outras nações do Caribe e passar vários dias no mar. O Ministério das Relações Exteriores de Cuba, em nota, ressaltou que a crise global pede ações cooperativas entre as nações: “São tempos de solidariedade, de entender a saúde como um direito humano, de reforçar a cooperação internacional para enfrentar desafios comuns, valores que nos são inerentes à prática humanística da Revolução e de nosso povo”. ¹ Entre outros grandes exemplos, podemos citar a equipe chinesa que chegou na Itália, juntamente com toneladas de suprimentos médicos, para ajudar a conter o surto do novo coronavírus. Francesco Rocca, presidente da Cruz Vermelha Italiana, agradeceu os especialistas chineses que, após seu árduo trabalho na linha de frente por mais de um mês, escolheram seguir em frente viajando até a Itália para oferecer ajuda. ²
No Brasil, os problemas podem se agravar para além do vírus se não internalizarmos os princípios fraternos e agirmos em prol do coletivo, por ações particulares ou privadas e políticas públicas que ajudem a combater a miséria de quem tem fome, de quem não tem casa, de quem tem frio e a enfrentar a pobreza de quem tem muito e não consegue³ compartilhar.
A prática econômica que se pretende sustentável não pode marginalizar os direitos fundamentais. O direito, assim como a vida no planeta, é sistêmico e a condenação a que estamos sujeitos enquanto espéce, em casos como esse que estamos vivenciando agora, não permite exclusão de ilicitude como no nosso Código Penal.
Inicia-se, talvez, a compreensão de que a fraternidade é a pedra fundamental para a continuidade da vida digna para a humanidade na Terra. Para se construir as condições necessárias a se evitar riscos à vida humana no planeta, se faz (há tempos) necessário e urgente a adesão às lentes sociais – um olhar que promova entre nós, alteridade e reconhecimento; assim como políticas públicas que considerem a economia como parte integrante do meio ambiente (para que haja equilíbrio e sustentabilidade) e de um corpo social (para que não marginalize a pobreza e oculte a desigualdade sustentada pela concentração de riquezas).
Em tempos de calamidade pública e exposição a riscos como agora, percebemos como a atuação do Estado é essencial e também como é imprescindível cooperar.
Quando se reconhece “estado de calamidade pública”, se impõem um dever social de mútua assistência e o cometimento de crimes nessas circunstâncias, demonstra, como ensina o professor Rogério Sanches ao citar Fernando Galvão, insensibilidade para com os mandamentos emanados da solidariedade social.
O Estado vem testando suas forças e nós nosso caráter social; percebe-se, tarde, o porquê de a saúde, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a erradicação da pobreza e a solidariedade, entre outros, estarem previstos nos tratados internacionais como direito humano e na nossa Carta Magna como DIREITO FUNDAMENTAL.
Que este difícil momento sirva para sermos mais solidários e nunca mais se diga que política não se discute, ou que a miséria do outro não é problema nosso. Que percebamos a tempo que estamos condenando o equilíbrio necessário para a vida digna no planeta Terra; estamos ferindo direitos pertencentes às gerações futuras. Que lembremos a todo momento que a Terra é um organismo VIVO e que estamos provocando em seu corpo físico o que vírus e bactérias provocam em nós: diarreia (lama), febre (fogo), falta de ar (óleo), tosse (combustíveis fósseis). Precisamos evoluir e preservar a memória e o planeta, que não é nosso (apenas estamos nele) ,precisa se recuperar das agressões sofridas.
Me despeço com esta, recente, notícia: Em razão dos bloqueios pelo coronavírus realizados na Itália, além de ter diminuído drasticamente a poluição, as águas dos canais de Veneza estão transparentes e até golfinhos têm aparecido por lá. ⁴
Bom final de semana e boa reflexão a todos!
______________________
³ opto pela palavra “consegue” e não “quer”, pois acredito que distribuir recursos e dividir riquezas é um dos maiores gestos de coragem que um ser humano pode exercitar.
⁴ https://www.noticiasaominuto.com/mundo/1436096/sem-turistas-veneza-esta-mais-bonita-e-recebe-visita-de-golfinho
https://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2020-03-16/quarentena-deixa-agua-dos-canais-de-veneza-cristalina.html

Flávia Alvim
Advogada e Escritora
Membro e secretária adjunta da Comissão de Meio Ambiente da OAB ES
Autora do livro abaixo:

Educação Ambiental à Luz do Direito
Uma introdução aos direitos difusos e coletivos de forma lúdica e acessível.
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Editora Lumen Juris, 2019.
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